Monday, October 3, 2016

Big data pode ser ruim para a sociedade? Claro! Como quase tudo pode ser

Eu gosto bastante de uma boa crítica, principalmente se me afeta diretamente. Talvez seja uma característica geral dos economistas – todos que eu conheço adoram compartilhar artigos que falam mal da ciência econômica. É difícil encontrar médicos, advogados e engenheiros que façam o mesmo.

Quer ganhar meu clique? Escreva um texto sobre como big data vai destruir a humanidade - pode ter certeza que eu vou ler. Terminei recentemente um livro sobre o assunto: “Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy”. Eu queria muito concordar com o livro porque acho que tem muita coisa que pode dar errado em big data, principalmente em inteligência artificial, mas o livro perde muito tempo com trivialidades.

As principais críticas do livro são referentes a algoritmos que não funcionam corretamente, como no caso da avaliação de professores. A autora me convenceu que os algoritmos usados atualmente são ruins, mas não me convenceu que eles não devem ser usados. Melhorar a precisão dos algoritmos é um problema resolvível. As melhores críticas sobre o uso de big data são sobre problemas não resolvíveis.

Se eu escrevesse um livro destruindo a área, eu focaria nos seguintes pontos:

- Apesar do ganho econômico da análise de big data para a sociedade, algumas profissões irão desaparecer ou mudar drasticamente. Como lidar com isso?

- Existem algumas áreas em que o uso de algoritmos preditivos por empresas não é moralmente aceitável (na minha opinião), como o caso do uso de dados genéticos por parte de planos de saúde. Como podemos evitar que isso ocorra?

- É inevitável que ocorram escândalos de invasão de privacidade. Qual o custo humano do vazamento de dados de pacientes com aids ou depressão, por exemplo?

A crítica à análise de big data precisa ir além da resolução de problemas técnicos. Afinal quase tudo que sai do controle tem seus efeitos negativos, como férias, Nutella e filhotes de labrador. Big data precisa de melhores críticos.

Thursday, September 1, 2016

Comparação das propostas para a saúde dos planos de governo dos candidatos a prefeito de São Paulo


A estratégia dos candidatos este ano segue a linha de tentar agradar ao número máximo de subgrupos específicos, que infelizmente é a direção individualista para a qual a maioria das democracias está caminhando. Neste post, tentei resumir as propostas com base nos temas com maior destaque ou mais repetidos nos planos de governo, com o objetivo de ignorar esses acenos a grupos de interesse. A ordem dos candidatos está apresentada de acordo com a sua intenção de voto nas pesquisas. Os planos estão disponíveis no site do TSE.


Russomano 

Eu desconfio que o capítulo sobre saúde foi o TCC de um aluno de graduação, devido ao abuso do senso comum e aos dados que parecem retirados da Wikipedia. A candidatura aparentemente tem como objetivo fazer com que a saúde “funcione de forma eficiente e resolutiva, adotando adequado sistema de gestão e organização”, mas não fornece pistas sobre o que isso significa.

Por outro lado, o projeto menciona que a taxa de mortalidade infantil será o principal foco do candidato, o que eu apoio fortemente. A mortalidade infantil ( < 1 ano de idade) é um ótimo indicador da situação de saúde devido à alta vulnerabilidade dos recém-nascidos aos fatores externos. O candidato promete “aprofundar o alcance” da meta referente à mortalidade infantil presente nos Objetivos do Milênio, mas não menciona que o prazo era 2015 e o Brasil a alcançou.

Em geral, o projeto tem muitas críticas banais à atual gestão e promessas de fazer melhor, mas poucas metas concretas. Segundo o plano de governo, para melhorar a saúde “não é necessário empreender nada mirabolante”. Dou nota 6 para esse TCC.


Marta

O plano de governo da Marta é o oposto. Uma imensa lista de metas, sem tempo para as platitudes do plano Russomano. A primeira meta é informatizar o sistema de saúde por meio do prontuário eletrônico, o que eu acho excelente. O potencial da digitalização da saúde em diminuir a repetição de exames, as filas para consultas e os erros de diagnóstico é imensa. O projeto promete também criar o Prontuário Eletrônico do Paciente, que na verdade já existe e é a grande marca do atual prefeito na área da saúde.

A segunda meta é criar uma coordenadoria para fiscalizar as Organizações Sociais (OSs), o que também é interessante. As OS têm um potencial de melhorar a atenção à saúde, mas se continuarem desreguladas num ambiente sem competição, continuarão a reproduzir os mesmos erros dos outros modelos de atenção.

Foram incluídas mais algumas dezenas de metas para a área da saúde, algumas boas, outras pouco relevantes, mas nenhuma polêmica.


Haddad

Como esperado, o plano do Haddad não poupa elogios ao Haddad. No capítulo sobre saúde, são incluídas como conquistas a criação de ciclovias e parques e a diminuição da velocidade nas Marginais. Os avanços na atenção à saúde são eventualmente mencionados e os principais são consequência da informatização do sistema, como a Rede Hora Certa, o Aqui tem Remédio e o prontuário eletrônico.

Em relações às metas específicas, a primeira é “estabelecer a participação e controle social como método de governo, fortalecendo os Conselhos e as Conferências de Saúde”, o que eu considero uma queda em relação às prioridades dos outros candidatos. De resto, as metas são direcionadas para ampliar os programas da atual gestão, o que pode indicar um cansaço administrativo e de ideias.


João Dória

O plano de governo do João Dória segue a linha de bullet points, o que me agrada, mas o conteúdo é um pouco frustrante. Os tópicos iniciais são comentários gerais sobre a melhoria da atenção à saúde. O primeiro ponto específico é acelerar a informatização da saúde, um tema que eu acho muito importante, como mencionado anteriormente. Assim como Marta, Dória promete a implantação do prontuário eletrônico integrado, que já existe e só precisa ser ampliado. O objetivo, segundo o plano, é evitar a “duplicação de exames e procedimentos que encarecem e sobrecarregam o sistema de saúde”, que é um bom diagnóstico dos problemas do nosso sistema de saúde e que tem o apoio de todos os economistas da saúde.

A meta seguinte é unificar o gerenciamento das vagas de internação com o governo do Estado. Isso parece uma boa ideia para os próximos dois anos, mas vai gerar muitas brigas desnecessárias se um outro partido for eleito no futuro. Além de uma menção breve sobre um programa de atendimento a usuários de drogas, chamado de Recomeço, as outras metas são referentes a melhorias da gestão de saúde sem muitos detalhes.


Conclusão: na minha opinião, o melhor plano de governo, considerando somente a área da saúde, é o da Marta.


Nota: a candidata Luiza Erundina foi desclassificada por propor a "criação do Imposto Voluntário”, cujos recursos "serão destinados a um fim, claramente determinado”.

Tuesday, July 26, 2016

A importância de incentivos econômicos na área da saúde

A primeira regra da economia é que as pessoas respondem a incentivos. Isso parece um pouco óbvio, mas é surpreendente como é mal explorada por empresas e pelo governo. Vou dar um exemplo da minha realidade, a Universidade de São Paulo. Há uns anos, em época de vacas gordas, a reitoria da USP decidiu distribuir um bônus aos professores. Era uma situação perfeita para incentivar as atividades que a reitoria achasse prioritárias no momento. Em vez disso, foi dado o mesmo exato bônus a todos. Alguns meses depois foi enviado um email aos professores sobre a importância de iniciarmos novas colaborações internacionais. Que grande oportunidade perdida para incentivá-las.

A área da saúde é provavelmente aquela que pior utiliza incentivos econômicos para estimular comportamentos de seus trabalhadores. O problema começa pelo sistema de reembolso dos gastos em saúde no Brasil, o de conta aberta, onde os hospitais recebem de acordo com o número de procedimentos realizados, em vez de ser proporcional à qualidade do atendimento prestado ou à satisfação do paciente. O incentivo econômico do sistema de conta aberta é claro: quanto maior o número de procedimentos, maior o lucro.

Entretanto, mesmo dentro do sistema de conta aberta, há muitas oportunidades de usar incentivos econômicos para incentivar comportamentos desejáveis. Um exemplo é o problema atual de epidemia de cesáreas. O Brasil é conhecido internacionalmente na área de saúde materno-infantil por ter uma das maiores taxas de cesáreas do mundo. Trata-se certamente de um problema multifatorial, mas talvez a principal razão seja o efeito dos incentivos econômicos vigentes, principalmente o fato de o médico receber pelo parto normal, que é mais trabalhoso, praticamente o mesmo que recebe por uma cesárea.

Uma iniciativa recente promovida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para aumentar a proporção de partos normais já está apresentando resultados promissores. Foram feitas duas mudanças simples, porém precisas: aumento da remuneração do parto normal e pagamento de um bônus para quem atinge a meta de partos normais. Segundo os envolvidos no projeto, a proporção de partos normais nos 40 hospitais participantes já subiu 9 pontos percentuais em menos de um ano. Isso pode com o tempo levar a uma mudança da "cultura de cesáreas" dos hospitais, melhorando a estrutura dos parto normais e incentivando ainda mais profissionais a aderirem nos próximos anos.

As pessoas respondem a incentivos. Uma regra tão simples, mas tão desprezada.

Monday, July 4, 2016

As batalhas ideológicas do século XXI serão sobre os indicadores de equidade dos algoritmos de machine learning


As decisões baseadas em algoritmos são a grande esperança para diminuir o efeito do preconceito humano na tomada de decisões. Milhares e milhares de estudos apontam que minorias e mulheres são consistentemente discriminadas por policiais, juízes, empresários e por todas as outras profissões com decisões subjetivas sobre punições e promoções.

A definição de critérios pré-estabelecidos por parte de algoritmos de machine learning traz a promessa de decisões livres de preconceitos, mas notícias recentes têm demonstrado que ainda temos um longo caminho a percorrer. O problema começa com quem está criando esses algoritmos de machine learning, caracterizado em um artigo recente do New York Times como “artificial intelligence's white guy problem”. A falta de consciência social por parte dos criadores desses algoritmos tem levado a alguns escândalos recentes.

Por exemplo, algoritmos de machine learning têm sido muito utilizados nos EUA para predizer risco de reincidência criminal, com o objetivo de auxiliar na tomada de decisão por parte dos juízes. Recentemente, entretanto, têm sido encontrados indícios de que os algoritmos consistentemente predizem maior risco de reincidência para negros, como mencionado em uma reportagem recente da The Atlantic. Isso faz sentido, já que, para um mesmo exato crime cometido, negros têm maior chance de serem condenados do que brancos. Assim, o algoritmo estaria contribuindo para que essa desigualdade que existe há décadas no sistema criminal se mantenha para sempre.

Nesse caso, a solução é clara. Ninguém quer que algoritmos perpetuem injustiças históricas, o que significa que esses algoritmos precisam ser corrigidos. Por outro lado, existem alguns problemas mais complexos que teremos de enfrentar em breve. Não estamos muito longe, por exemplo, de serem utilizados algoritmos para identificar prioridades para a realização de cirurgias, com o objetivo de selecionar pacientes que se beneficiarão mais do procedimento.

Isso pode se tornar um grande problema. A tendência inicial do algoritmo será necessariamente selecionar pacientes de maior renda, já que esses têm mais tempo e recursos para a recuperação completa e, portanto, apresentarão maiores benefícios da cirurgia. Do ponto de vista de eficiência pura faz sentido priorizar essas pessoas, mas será que é isso mesmo que queremos? A existência desses "algoritmos preconceituosos" já é uma realidade, o que traz a necessidade da introdução de indicadores de equidade aos modelos. Com isso, em uma situação em que dois pacientes tenham uma predição de taxa de recuperação parecida, seria dada prioridade para o paciente com renda mais baixa.

Com a automatização das decisões por meio de algoritmos, os indicadores de equidade serão o motivo de um grande número de brigas ideológicas. Por um lado, libertários dirão que a eficiência deve ser o objetivo, por outro lado, progressistas dirão que a prioridade deve ser a justiça social, mesmo que isso leve a um pior resultado agregado. 

Não estamos muito longe desse futuro. Se você costuma participar de manifestações de rua, você provavelmente ainda vai levantar muitos cartazes com a sua opinião sobre os indicadores de equidade.

Tuesday, June 28, 2016

O consenso entre economistas da saúde e o problema da assimetria da informação

Estamos em 2016, na era do Twitter, textões no Facebook, fotos no Instagram e vídeos no Snapchat – e eu decidi criar um blog. Confesso que com a exceção do Andrew Gelman e do Incidental Economist, eu não acompanho blogs desde o fim do Google Reader. Blogs estão suficientemente mortos que chegou a hora de trazê-los de volta.

Como primeiro post do blog, decidi escrever sobre a existência de um consenso entre economistas da saúde. Economistas são amplamente conhecidos por não concordarem em quase nada. Afinal, ainda estamos brigando sobre assuntos estudados há décadas como a importância do salário mínimo, taxas de juros e as causas do aumento da desigualdade

O interessante é que a área da saúde é diferente. Economistas da saúde costumam concordar com um conjunto de políticas básicas como, por exemplo, mudar o tipo de financiamento, disponibilizar indicadores de qualidade de prestadores de saúde e limitar o crescimento da judicialização da saúde, como mencionado em um artigo recente da Claudia Collucci na Folha. Até economistas mais alinhados com ideologias liberais defendem alguma presença do Estado na saúde. Larry Summers, por exemplo, liderou um manifesto recente de economistas da saúde em defesa do sistema universal de saúde.

Isso acontece porque a área da saúde é tão afetada por imperfeições de mercado, que para que o debate ideológico se inicie é necessário tomar primeiro um conjunto de medidas básicas. Este blog irá abordar essas imperfeições de mercado separadamente ao longo dos próximos posts. A grande maioria dessas imperfeições são resultado do pecado original da economia da saúde: a assimetria da informação.

Assimetria da informação ocorre quando um agente tem mais informação do que o outro. Por exemplo, pacientes não conhecem bem a qualidade dos hospitais da sua cidade (já que provavelmente não frequentam muitos hospitais diferentes num mesmo ano – ao contrário dos outros bens que consumimos no dia-a-dia). Isso gera um incentivo para que hospitais não invistam em qualidade, mas sim na aparência de qualidade por meio de investimentos em propaganda. O mesmo vale para medicamentos caros, clínicas e planos de saúde.

Assimetria da informação também aparece na relação entre pacientes e profissionais da saúde. Esses últimos têm muito mais informações sobre os benefícios de exames e, se sofrerem pressão externa para aumentar o número de exames solicitados, aumentarão os gastos sociais com saúde sem gerar um benefício significativo para os pacientes.

Isso não significa que pacientes são as grandes vítimas da assimetria da informação - eles também a usam em benefício próprio. Planos de saúde, por exemplo, não conseguem saber com precisão a situação de saúde dos seus clientes. Isso favorece indivíduos com muitos problemas de saúde, que conseguem esconder essa informação e pagar uma mensalidade mais baixa do que os planos gostariam que eles pagassem.

Essas imperfeições de mercado afetam toda a cadeia produtiva da saúde, gerando distorções gigantescas que precisam ser minimizadas. Aí entra o papel regulador do Estado, que precisa estar presente na área da saúde.

Até agora tentei apresentar o problema de uma forma técnica, mas não podemos esquecer que estamos falando de vidas. A falta de acesso a serviços de saúde por parte de pessoas de baixa renda não é moralmente aceitável e, mesmo sem a presença de assimetria da informação, já justificaria uma intervenção para garantir a equidade no acesso.

Há sim muitos debates ideológicos a serem feitos em economia da saúde no futuro, mas até lá precisamos consertar o básico. A boa notícia é que existe um consenso sobre quais são os primeiros passos a serem tomados (novas formas de financiamento, diminuir o peso da judicialização da saúde e aumentar os indicadores de qualidade). Só falta vontade política.